Tuesday, January 12, 2010

A mosca na sopa

Aquele foi o ano em que o pessoal da aldeia sacrificou minha mãe ao mar.

Parece um clichê, não? Dos piores. "Aldeia isolada sacrifica pessoas a deuses ctônicos e inumanos." Mas, bem, é verdade. E o que se imagina quando se lê isso - o resto do clichê, está profundamente errado; as pessoas na aldeia em que cresci não tinham olhos esbugalhados de peixe, nem nada contra visitantes. Muito pelo contrário, havia um belo posto turístico ao lado da velha tonarra abandonada, e no cais onde os atuns passavam dos navios modernos para caminhões, o turista podia brincar de restaurateur e oferecer um preço para levar seu próprio atum, que seria limpo, retalhado, e colocado em sacos dentro de caixas de isopor, para que o turista levasse de volta para a cidade grande, onde eventualmente metade do peixe estragaria, depois que o candidato a sushiman enjoasse profundamente até da cor vermelho-viva da carne de atum.

Enfim, não era nada demais. Éramos todos criados aprendendo na escola e na TV aquelas coisas que toda criança japonesa aprende, e em casa que se quiséssemos que a aldeia não fosse punida por alguma calamidade, deveríamos sacrificar, uma vez por ano, algum dos nossos ao deus do mar. Ou aos deuses do mar - as estórias eram meio vagas e muito antigas, então sobre essa parte ninguém tinha muita certeza. Se imaginava que o sr. Ozeki, que era o chefe do culto além de ser o assistente chefe de dez prefeitos diferentes, soubesse, mas como ele era muito mal humorado, ninguém tinha coragem de nunca lhe perguntar nada. (A piada na aldeia era de que uma vez ele teria caído de cama com uma pneumonia, simplesmente porque tinha quebrado a bicicleta numa chuva torrencial e ninguém, ao passar, tinha coragem de lhe oferecer ajuda por medo de levar uma bronca.)

O que sabíamos era que sempre se escolhia na aldeia alguém que estivesse desenganado, e essa pessoa era sacrificada logo antes do solstício de verão, na velha tonarra. Então, quando soubemos que minha mãe estava com câncer, o sr. Ozeki conseguiu convencer os médicos a deixarem ela morrer em casa ao invés de no hospital. Eu tinha treze anos, e ainda não era exatamente um adulto, então me disseram que podia escolher acompanhar ou não a cerimônia, e óbvio que disse sim. Parte porque queria ficar com minha mãe até o fim, e parte porque é bastante excitante para um menino de treze anos ver um sacrifício humano com seus próprios olhos.

Na véspera, minha mãe me deu um beijo na testa e me disse para cuidar bem da minha irmã mais nova. Era como se ela estivesse só indo fazer uma viagem pra cidade, e eu não sabia direito o que fazer, então não fiz nada, além de entregar a ela uma tsurugi, uma cegonha de origami que tinha aprendido a fazer na aula de artes. No dia seguinte, quando acordei, uma tia nos serviu o café da manhã, explicando que minha mãe havia sido levada. Sentar na escola durante aquele dia, tendo que controlar tanto a preocupação com minha mãe quanto a excitação por conta da cerimônia, foi a coisa mais difícil que eu já havia feito.

Naquela noite, fui levado junto com os adultos à velha tonarra. Lá estava o sr. Ozeki, usando uma roupa de pele de atum cujo cheiro eu conseguia sentir, a uns dez passos de distância. Nós outros estávamos todos nus; algumas pessoas tinham grandes olhos amarelos pintados em suas faces. Minha mãe foi levada numa maca para o centro da tonarra; ela estava obviamente drogada, nunca soube se com a própria morfina do hospital ou com algo mais exótico. Tambores batiam, mas eu não conseguia ver quem os tocava (a tonarra tem muitos esconderijos - afinal, os atuns não são burros). Era estranho ver o sr. Ozeki sem terno e gravata, mais do que vê-lo naquela roupa malcheirosa.

A um sinal dele, os tambores aumentaram de ritmo e intensidade. Dois ajudantes se aproximaram de minha mãe com cordas e começaram a atá-la, com muita força. Primeiro nos pulsos. Tornozelos. Joelhos. Cotovelos. Ombros. Coxas. Rapidamente os pedaços separados do coração foram se tornando brancos. Foi atada, então, uma corda em torno da cintura de minha mãe, mais solta, e ela foi descida por essa corda para dentro da água. O sr. Ozeki, então, numa voz estranha, gritou alguma coisa e desceu à tonarra, com uma faca serrilhada na mão - como uma imensa faca de pão. Demorou submerso uma eternidade, e não se podia ver nada debaixo da água escura. Quando emergiu, logo depois içaram minha mãe, e eu podia ver que ela não tinha mais membros - apenas tronco e cabeça, como um Darumá horrível. Os tambores cessaram, e ela foi deixada ali, pendurada, logo acima da água, parecendo mesmo um Darumá na prateleira. Me avisaram que era hora de ir embora.

Mais tarde naquela noite, quando todos já tinham ido dormir, escapei pela janela (minha tia dormia em frente à porta, num colchonete) e fui até a tonarra.

(continua)



N.T. - Tonarra: espécie de labirinto de tanques e canais, para o qual são atraídos cardumes de atuns na pesca tradicional daquele animal. Presos no labirinto, os atuns são arpoados pelos pescadores.

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