Sunday, December 11, 2005

Gota

A três mil metros de altura, no meio de uma nuvem escura (cúmulo-nimbo), uma gota se forma. Desce atravessando ar gelado, depois camadas de ar cada vez mais denso e quente, ganhando velocidade, até encontrar um obstáculo, a marquise de um prédio na Rua do Ouvidor. Em passo mais lento continua em frente (abaixo), atravessando gerações de fuligem de automóvel tornada carvão, de cocô de pombo fossilizado, camadas mais finas deixadas pela fumaça de carrocinhas de churrasco. Atravessa o próprio concreto, ganha velocidade de novo enquanto circula uma estalactite e assim, girando, acerta o meu olho.

Prazer, José. Idade: esqueci. Profissão: da rua. Logradouro: aqui mesmo, entre o Unibanco (lucro anual: 1,4bn) e o ABN-AMRO (lucro anual: 6,4bn). Com licença, que eu tenho de ir ali na esquina mijar. Essa aqui do lado é minha filha, se quiser falar com ela enquanto isso...

Pronto. Não falou nada? Ô menina, deixa de ser mal-educada. Minha filha, sim. Ou pelo menos a mãe dizia que é, não tenho porque desconfiar da pobre criatura, que Deus a tenha. Morreu, sim, morreu de caminhão quando tentava atravessar a Rodrigues Alves com seu carrinho. Já faz um tempo. Crio a menina, com muito orgulho, é quietinha assim mas nunca cheirou cola, já sabe ler e escrever. Tá meio sujinha, mas isso a gente resolve no convento. Antigamente eu ia no chafariz, mas hoje em dia eles fecham a água para que a gente não tome banho. Uma barbaridade.

Eu pessoalmente acho que tô sujo também. Mas no convento eu não posso tomar banho. Não tenho raiva das freirinhas não, tadinhas. Todas tão velhinhas, não parecem mais passarinhos - minha mãe sempre dizia que freira parece passarinho, parecem uns pingüins, andando devagarzinho, devagarzinho.

Enfim.

Olha, menina, o dirigível! É, ela gosta muito do dirigível. Mesmo sabendo que é da polícia. Minha filha. Eu já fui piloto de avião, quando era mais novo. Não, não desses grandões de aeroporto. Avião de campo, de jogar inseticida (Monsanto: imagine). Aí fiz uma besteira, aceitei carregar droga, quando saí da cadeia não tinha quem me aceitasse como piloto. Não por preconceito não, meu patrão era um homem muito bom. É que me fizeram muita maldade na cadeia, não dava mais pra pilotar avião direito. Tentei um emprego que me arranjaram, atendendo telefone, mas não deu certo. Aí vim pra cá. A mãe da menina, conheci no rebotalho da Coag, morava com ela numa invasão lá do Porto. Quando ela morreu, desgostei do lugar, vim pra cá. É menos seguro mas é mais fresquinho. Chegamos. Oi, irmã Remédios, como vai a senhora? É, trouxe a menina. Foi um caminhão que enguiçou ontem, muita fuligem. Tá menos cinza é pela chuva mesmo, a senhora devia ver quando acordou, tava mais preta do que eu.

Olha a gota d'água, que coisa mais linda? Limpinha.

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