Monday, February 28, 2011

Traduzindo Ondaatje

Se eu por ofício colhesse canela
andaria por tua cama.
E deixaria em teu travesseiro
o pó amarelo da casca.

E o odor em teus ombros, seios
te impediria de andar pela feira
sem que minha profissão de dedos
flutuasse sobre ti. Até os cegos
tropeçariam certos de a quem se dirigiam
mesmo que te banhasses
sob calhas, sob monções.

Aqui, acima da coxa
na paragem macia
junto a teu cabelo;
no vinco das tuas
costas. Este tornozelo.
Serás conhecida pelos outros como
a mulher do colhedor de canela.

Te olhar, só de soslaio
antes do casamento
e nunca te tocar
- tua mãe tem olfato apurado, teus irmãos são duros.
Mergulhei minhas mãos
em açafrão, as disfarcei
sobre alcatrão, e ajudei
os colhedores de mel.

Uma vez, nadando
pude te tocar sob a água
sem que nossos corpos se marcassem,
poderias me abraçar se mantendo cega ao cheiro.
- subiste ao seco dizendo

assim é como você toca às outras,
à mulher do meeiro. À filha do caiador.
E procuraste em teus braços
Pelo ausente perfume.

e soubeste

Que graça
ser a filha do caiador
largada sem traço
como alguém que é amada se que lhe falem
como alguém que é ferida sem deixar traço
-sem o prazer da cicatriz.

E trouxeste
tua barriga às minhas mãos
no ar seco, dizendo
Eu sou a mulher do colhedor
de canela. Cheira.

Friday, February 25, 2011

Soneto XIII, traduzido

Os olhos de minha dona com o sol não se parecem
O coral é bem mais vermelho do que os lábios dela
Se a neve é branca, bem seus peitos são begem
Se cabelos são arames, são arames sua cabeleira

Já vi rosas aveludadas, brancas e encarnadas
Mas não vejo rosas dessas em suas face
E há em alguns perfumes mais doçuras
Do que no ar que perto dela se respire

Amo ouvi-la falando, mas tenho que admitir
Que o som da música é bem mais belo
Nunca uma deusa pelos caminhos a se ir
Minha dona, quando anda, anda pelo chão

E apesar disso, juro, minha amada é mais rara
Do que seria qualquer comparação ignara

Wednesday, February 23, 2011

Caixote

O branco vira azul vira verde
Vira o céu em mar
E eu, entediado de medos, me
Sinto quase afogar

O sal entra aonde não deveria entrar
Entra, invade, e
E eu sinto meu corpo me desobedecer
Girando impotente

Thursday, February 17, 2011

Nós

Nós, o povo
Nós, que sangramos
Nós, que não temos balas
Nós, que temos fome.

Vós, os tiranos
Vós, que dais ordens
Vós, que não tendes remorsos
Vós, que tendes anéis.

Eles.
Que lêem, que torcem, que falam.
Muitos deles.

Os vossos deles, os nossos.
E os outros. Outros nós. Outros povo.
Que enfim poderão descobrir, pela fome ou pela fé.
Que ou se é povo ou tirano.

Monday, February 14, 2011

Algas marinhas

Dizem que, certa vez, ou talvez nunca
ou talvez ou talvez ou talvez sempre
o mar amou às ondas e sua espuma branca.

E as ondas, em sua interminável enorme
e pura feroz frenética mutável confusão
grávidas do mar, foram ameaçadas de forma

E foi assim, cuco, que nasceste em forma
apenas um pouco melhor do que poderia ser
qualquer forma humana, que é da onda erma

Que vêm teus cabelos de algas marinhas,
que vem teu cheiro de sal, de iodo e saudade,
e tem humor assim mutável, e também minhas

Assim
tão sentidas
saudades
do teu murmurejar.

Thursday, February 03, 2011

Tocando o céu

A noite que se punha no deserto era seca, e pesada de pó e de clichês. A noite grossa de estrelas sobre nós, o cheiro acre de suor humano que era apenas uma nota sobre o fedor dos camelos, o cansaço, a poeira lavada de rostos e mãos, os grunhidos das bestas ao beber água. O velho, também, era como um clichê animado por uma força mal compreensível naquele corpo seco e magro, escalavrado por mil tempestades de areia, os olhos semicerrados, balançando cadenciado ao ritmo das palavras que saíam de lábios quase imóveis, as mãos estendidas, a direita parecendo frágil demais para suportar um pesado bastão de madeira. E você - outro clichê - quase não percebia quando começava a ouvir suas palavras, mas não perdia nenhuma delas...

Em nome de Deus, o misericordioso, cheio de misericórdia, ouçam minha estória, filhos de Ismael e também vós, gentios de além-mar!

E saibam que há muito tempo atrás, Bagdá a gloriosa ainda não havia sido destruída pelos demônios da estepe, e o Comandante dos Crentes era o profeta Anasir Lidinalá, chamado o forte, o irascível, o mão aberta, e o comedor de salsichas. Nesses tempos, vivia em Bassorá um mercador do povo dos judeus, primeiro dos povos do Livro, que se chamava Itzhak ben Abraham. Tendo recebido de seu pai um nome igual ao do patriarca, cedo esse filho de mercadores se dedicou aos estudos, de modo que aos 13 anos ele já discutia com os sábios na madrassa; aos 15 havia decorado a Torá e o Corão; e aos 18 já era considerado um rabino de renome, chamado pelo próprio Califa para debater perante sua Corte. Nem havia Itzhak esquecido dos afazeres mundanos para se dedicar ao estudo de Deus; pelo contrário, havia se tornado um mercador próspero como seu pai, e cento e cinquenta estudiosos sem pecúlio eram sustentados por sua generosidade.

Mas a fome de conhecimento de Itzhak não se aplacava com a leitura dos textos santos, nem com os relatos que seus capitães lhe faziam de terras distantes, nem pelo aprendizado de todas as línguas faladas pelos homens, da franja ocidental do país dos franj até a distante ilha de Cipango. Nem a fome de beleza dele se satisfazia com as belezas que passavam por seus olhos, apesar delas estarem bem além da capacidade de um velho como eu descrevê-las. Era ele o provedor de beldades para o harém do Califa, e via passarem por seus olhos e escrutínio mulheres e rapazes de todas as terras circundadas pelo Oceano - circassianas ruivas de ânimo guerreiro, etíopes delgadas como gazelas, chinesas cujos cabelos eram como panos de noite, varangas de olhos azuis como o céu num dia de inverno.

Era ele o provedor de livros para as madrassas de Bagdá e do Cairo, e assim via passar por suas mãos livros de pergaminho e papel, de casca de árvore e folha de bananeira, pintados por artesãos inigualáveis, cheios de miniaturas ou abstratos, dourados ou simples. Foi ele quem entregou ao califa um livro feito apenas de folhas, maiores que um homem, da árvore upas, cuja sombra é mortífera; esse livro o califa se punha a ler quando pretendia eliminar algum vizir pérfido ou general traiçoeiro.

E era ele o provedor de jóias e curiosidades para a corte, e assim via e esmiuçava rubis sem conta, diamantes sem número, datas de marfim e pratos marchetados em ouro e prata; faianças da Turquia e porcelanas do rio das pérolas, sedas da Manchúria e linhos do Egito. E máquinas maravilhosamente concebidas, que cantavam e dançavam, e derrotavam aos sábios no xadrez, cravejadas de pedras preciosas e leves de passo.

Mas nada disso satisfazia o sábio mercador, que clamava por uma beleza e um conhecimento que não encontrava na terra. Assim é que ele se interessou pelos estudos místicos, e deixou na mão de seus filhos a administração de sua casa, e a manutenção dos cento e cinquenta pobres estudiosos. Com tal fervor se dedicou, e tanto abandonou os cuidados deste mundo que Itzhak, que sempre havia sido o homem mais elegante de Bassorá, transformou sua visada na de um indigente, de longa e engrenhada barba, com as mãos de unhas quebradas, os olhos esbugalhados e febris, tão absorto em seu estudo que apenas com palavras secas e rudes se dirigia aos que lhe cumprimentavam.

E o que estudava Itzhak ben Abraham? Estudava como se chegar em vida ao paraíso. Ó desígnio ímpio! E tanto estudou que finalmente, numa noite em que o vento soprava do mar, retirou-se para o teto de sua casa. Havia se banhado por sete dias seguidos em água trazida por seus escravos das montanhas do Cáucaso. Trajava uma roupa limpa de puro linho branco, tecida sob o sol escaldante nos desertos da Líbia, por virgens que nunca haviam visto um homem. E desenhou no chão, com um giz cuja composição é secreta, estranhos símbolos e letras retorcidas, signos de línguas esquecidas antes de ser construída a Babilônia. Da boca do estudioso Itzhak saiu um estranho ciciar, era a língua dos anjos, e lhe queimava a língua e as ventas. Por três horas, entre o levantar da estrela d'alba e o pôr-se da lua, ele enfrentou essa tortura, até que um grande vento
, no qual havia asas e vozes, lhe arrebatou e conduziu até seu destino. 

Os portões do paraíso são de latão e luz, presos aos postes de marfim e osso de forma maravilhosa: não por meras correntes, mas pelos versos do Corão. E através deles o vento dos querubins arrastou o filho de Jacó, que viu assim seu desejo enfim se concretizar. Mas eis que Itzhak percebeu a verdade da terrível beleza celestial. Pois que a água do céu é tão límpida que queima como ácido; a luz do céu tão pura que ao seu contato os olhos humanos fervem e se perdem no ar celestial; e por sobre tudo no céu, e dentro e através e ao redor, fluem os hosanas e cantos dos anjos, que mais do que tudo eliminam a imperfeição e o barro dos homens. De modo que o mercador-filósofo teve, como paga de seus atos, apenas um vislumbre da perfeição celestial, antes que todos os seus sentidos fossem destruídos por essa perfeição, e ele, desesperado, se jogasse para fora dos portões reluzentes.

A sua queda ao chão só não se tornou sua morte porque um anjo dele se apiedou, e guardando suas infinitudes na forma de uma moça, levemente o tomou em seus braços, e levou-lhe à casa onde vivia uma piedosa viúva. E na casa dessa viúva, como o último dos objetos de caridade, é que Itzhak Ben Abraham, que foi chamado em seu tempo de o Orgulhoso e de O Sábio, terminou seus dias. Saibam que esta foi a minha lição, e ignorem-na, ó filhos de Ismael, Jacó e Isa.


Acabadas as últimas palavras do velho, apenas no horizonte se percebia um sopro de sol; acima de nós, as estrelas continuavam a brilhar em espessas camadas. Era hora de partir.