Monday, July 23, 2007

Sonho do encontro

Ele andava pelo meio da rua - pelo meio, não pela calçada - quando a dragoa apareceu. Num instante, como se ele estivesse num filme e a partir de um fotograma, naquela minúscula fração de segundo, alguém tivesse simplesmente inserido uma coisa daquele tamanho. Porque ela era enorme: a cabeça, barroca de pele e escamas, ocupava quase a rua inteira, e atrás dela via-se o pescoço e o corpo, esguios e serpentinos, dobrando a esquina. Os olhos imensos não tinham pupilas, mas uma multidão confusa de cores e fractais, hipnóticos mesmo em meio ao terror do monstro imenso, das fumarolas que escapavam dos cantos da boca.

Acordou suando, com o susto, com medo do que não era real. Para se assegurar de que o sonho tinha acabado, passou a mão pela realidade dos lençóis de seda sintética, da manga do paletó jogado ao lado da cama, de veludo artificial, dos peitos de silicone da namorada. Deixou que a mão brincasse um pouco ao chegar nestes, tentou beijá-los, mas a namorada não acordava e ele desistiu, abraçando-a, e dormiu sem sonhos até de manhã.

Foi cochilando depois do almoço, no carro estacionado sob uma amendoeira, que apareceu de novo. E depois, enquanto dormitava numa reunião - o susto divertiu muito seus colegas, que passaram o dia seguinte fazendo caras de susto, diversas e pouco engraçadas. Ele achava que devia explicar que não foi simplesmente o susto de acordar que lhe fez pular, mas ficava com vergonha de explicar que tinha pulado de medo porque, em seu sonho, a cauda longuíssima de uma dragoa ia lentamente se enroscando em volta dele, a espiral acumulando voltas e mais voltas sem nunca tocá-lo, a não ser pelo toque ocasional e quase imperceptível nos pêlos dos braços, ouriçados de medo.

Tentou conversar, no clube sobre uma mesa com churrasquinhos e caipirinhas, com o amigo sobre o assunto. 'Então tu tá com medo de bicho papão, mané? Nessa idade? Já se mijou?'
'Não é bicho-papão, é dragão. Ou melhor, dragoa.'
'Como assim dragoa? É um dragão fêmea? Como você sabe disso? Ela tem peitinhos? Usa batom?'
'Não. Quer dizer, lógico que não, porra. Aliás, não tem nada físico que faça eu achar isso. Mas eu sei, de algum jeito, toda vez que eu sonho, que é o mesmo dragão, e que é uma fêmea.'
'Você tá é doido. Pra doido, vai num médico de cabeça. Analista, psiquiatra...'
'Eu não sou doido, porra. E não vou num cara desses porque não acredito nesses porras.'
'Tu que sabe, rapá. Eu vou voltar pra piscina. Desencana, depois passam esses sonhos.'
'Valeu, vou também.'
'Tu viu os peitos da Alicinha, tua prima, cara? Ela cresceu, hein...'

Dois meses depois, quando já tinha parado de sair à noite para que não corresse risco de cochilar em qualquer canto, acordando suado mais uma noite, é que ele se deu conta de por quê tinha os sonhos recorrentes. Pensando bem, era óbvio. No dia seguinte, largou a namorada. Na noite seguinte, foi dormir segurando um buquê de rosas (apesar dos espinhos doerem um tanto), e uma caixa de bom-bons. Dois dias depois, no analista, ele dizia 'Tá eu sei que se apaixonar por um animal mitológico é meio esquisito, mas ela me paquerou primeiro...'

Wednesday, July 18, 2007

Xingando aliterativo

Pô.
Porra.
Putzcaralho.
Palavrões são apenas palavras?
Palavras parando as línguas.
Mandando os putos pra puta que OS PARIU.
Porra.
Pensando sem palavras.
Palavras porrando tudo. Quebrando
línguas, cabeças, cérebros. Fodendo
pensamentos, aspirações, ideais.
Penso...
Penso em palavrões penetrantes. Invento
substâncias, matérias, coisas
obscenas e ofensivas. Piores
do que todos os palavrões anteriores.
Que fariam corar arcebispos e putas
Deixariam marinheiros vermelhos como crianças
E crianças felizes, rindo dos adultos.
Palavrões que quebrassem o mundo,
para que outro pudesse nascer.
Que acabassem com essa merda de mundo, para que outro
surgisse, mais belo,
da beatífica buceta cósmica.

Thursday, July 12, 2007

Morangos

There were never strawberries
like the ones we had
that sultry afternoon
sitting on the step
of the open french window
facing each other
your knees held in mine
the blue plates in our laps
the strawberries glistening
in the hot sunlight
we dipped them in sugar
looking at each other
not hurrying the feast
for one to come
the empty plates laid on the stone together
with the two forks crossed
and I bent towards you

sweet in that air
in my arms
abandoned like a child
from your eager mouth
the taste of strawberries
in my memory
lean back again
let me love you

let the sun beat
on our forgetfulness
one hour of all
the heat intense
and summer lightning
on the Kilpatrick hills

let the storm wash the plates



-Edwin Morgan. Disponível como parte da fodíssima coleção Poetas do Mundo, da Editora da UnB.