Thursday, February 03, 2011

Tocando o céu

A noite que se punha no deserto era seca, e pesada de pó e de clichês. A noite grossa de estrelas sobre nós, o cheiro acre de suor humano que era apenas uma nota sobre o fedor dos camelos, o cansaço, a poeira lavada de rostos e mãos, os grunhidos das bestas ao beber água. O velho, também, era como um clichê animado por uma força mal compreensível naquele corpo seco e magro, escalavrado por mil tempestades de areia, os olhos semicerrados, balançando cadenciado ao ritmo das palavras que saíam de lábios quase imóveis, as mãos estendidas, a direita parecendo frágil demais para suportar um pesado bastão de madeira. E você - outro clichê - quase não percebia quando começava a ouvir suas palavras, mas não perdia nenhuma delas...

Em nome de Deus, o misericordioso, cheio de misericórdia, ouçam minha estória, filhos de Ismael e também vós, gentios de além-mar!

E saibam que há muito tempo atrás, Bagdá a gloriosa ainda não havia sido destruída pelos demônios da estepe, e o Comandante dos Crentes era o profeta Anasir Lidinalá, chamado o forte, o irascível, o mão aberta, e o comedor de salsichas. Nesses tempos, vivia em Bassorá um mercador do povo dos judeus, primeiro dos povos do Livro, que se chamava Itzhak ben Abraham. Tendo recebido de seu pai um nome igual ao do patriarca, cedo esse filho de mercadores se dedicou aos estudos, de modo que aos 13 anos ele já discutia com os sábios na madrassa; aos 15 havia decorado a Torá e o Corão; e aos 18 já era considerado um rabino de renome, chamado pelo próprio Califa para debater perante sua Corte. Nem havia Itzhak esquecido dos afazeres mundanos para se dedicar ao estudo de Deus; pelo contrário, havia se tornado um mercador próspero como seu pai, e cento e cinquenta estudiosos sem pecúlio eram sustentados por sua generosidade.

Mas a fome de conhecimento de Itzhak não se aplacava com a leitura dos textos santos, nem com os relatos que seus capitães lhe faziam de terras distantes, nem pelo aprendizado de todas as línguas faladas pelos homens, da franja ocidental do país dos franj até a distante ilha de Cipango. Nem a fome de beleza dele se satisfazia com as belezas que passavam por seus olhos, apesar delas estarem bem além da capacidade de um velho como eu descrevê-las. Era ele o provedor de beldades para o harém do Califa, e via passarem por seus olhos e escrutínio mulheres e rapazes de todas as terras circundadas pelo Oceano - circassianas ruivas de ânimo guerreiro, etíopes delgadas como gazelas, chinesas cujos cabelos eram como panos de noite, varangas de olhos azuis como o céu num dia de inverno.

Era ele o provedor de livros para as madrassas de Bagdá e do Cairo, e assim via passar por suas mãos livros de pergaminho e papel, de casca de árvore e folha de bananeira, pintados por artesãos inigualáveis, cheios de miniaturas ou abstratos, dourados ou simples. Foi ele quem entregou ao califa um livro feito apenas de folhas, maiores que um homem, da árvore upas, cuja sombra é mortífera; esse livro o califa se punha a ler quando pretendia eliminar algum vizir pérfido ou general traiçoeiro.

E era ele o provedor de jóias e curiosidades para a corte, e assim via e esmiuçava rubis sem conta, diamantes sem número, datas de marfim e pratos marchetados em ouro e prata; faianças da Turquia e porcelanas do rio das pérolas, sedas da Manchúria e linhos do Egito. E máquinas maravilhosamente concebidas, que cantavam e dançavam, e derrotavam aos sábios no xadrez, cravejadas de pedras preciosas e leves de passo.

Mas nada disso satisfazia o sábio mercador, que clamava por uma beleza e um conhecimento que não encontrava na terra. Assim é que ele se interessou pelos estudos místicos, e deixou na mão de seus filhos a administração de sua casa, e a manutenção dos cento e cinquenta pobres estudiosos. Com tal fervor se dedicou, e tanto abandonou os cuidados deste mundo que Itzhak, que sempre havia sido o homem mais elegante de Bassorá, transformou sua visada na de um indigente, de longa e engrenhada barba, com as mãos de unhas quebradas, os olhos esbugalhados e febris, tão absorto em seu estudo que apenas com palavras secas e rudes se dirigia aos que lhe cumprimentavam.

E o que estudava Itzhak ben Abraham? Estudava como se chegar em vida ao paraíso. Ó desígnio ímpio! E tanto estudou que finalmente, numa noite em que o vento soprava do mar, retirou-se para o teto de sua casa. Havia se banhado por sete dias seguidos em água trazida por seus escravos das montanhas do Cáucaso. Trajava uma roupa limpa de puro linho branco, tecida sob o sol escaldante nos desertos da Líbia, por virgens que nunca haviam visto um homem. E desenhou no chão, com um giz cuja composição é secreta, estranhos símbolos e letras retorcidas, signos de línguas esquecidas antes de ser construída a Babilônia. Da boca do estudioso Itzhak saiu um estranho ciciar, era a língua dos anjos, e lhe queimava a língua e as ventas. Por três horas, entre o levantar da estrela d'alba e o pôr-se da lua, ele enfrentou essa tortura, até que um grande vento
, no qual havia asas e vozes, lhe arrebatou e conduziu até seu destino. 

Os portões do paraíso são de latão e luz, presos aos postes de marfim e osso de forma maravilhosa: não por meras correntes, mas pelos versos do Corão. E através deles o vento dos querubins arrastou o filho de Jacó, que viu assim seu desejo enfim se concretizar. Mas eis que Itzhak percebeu a verdade da terrível beleza celestial. Pois que a água do céu é tão límpida que queima como ácido; a luz do céu tão pura que ao seu contato os olhos humanos fervem e se perdem no ar celestial; e por sobre tudo no céu, e dentro e através e ao redor, fluem os hosanas e cantos dos anjos, que mais do que tudo eliminam a imperfeição e o barro dos homens. De modo que o mercador-filósofo teve, como paga de seus atos, apenas um vislumbre da perfeição celestial, antes que todos os seus sentidos fossem destruídos por essa perfeição, e ele, desesperado, se jogasse para fora dos portões reluzentes.

A sua queda ao chão só não se tornou sua morte porque um anjo dele se apiedou, e guardando suas infinitudes na forma de uma moça, levemente o tomou em seus braços, e levou-lhe à casa onde vivia uma piedosa viúva. E na casa dessa viúva, como o último dos objetos de caridade, é que Itzhak Ben Abraham, que foi chamado em seu tempo de o Orgulhoso e de O Sábio, terminou seus dias. Saibam que esta foi a minha lição, e ignorem-na, ó filhos de Ismael, Jacó e Isa.


Acabadas as últimas palavras do velho, apenas no horizonte se percebia um sopro de sol; acima de nós, as estrelas continuavam a brilhar em espessas camadas. Era hora de partir.

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