Em nome de Alá o misericordioso, cheio de misericórdia:
Há muito, muito tempo atrás - antes que o Profeta, a paz esteja com ele, tivesse recebido sua mensagem de fogo da espada do Arcanjo, nos tempos em que os filhos de Ismael ainda vagavam sem língua nem letra pelo deserto, vivia uma mulher.
Como os outros, essa mulher não tinha um nome, e não sabia que as pessoas podiam ter nomes. Ás vezes, em sua casa no topo de um monte cheio de vinhedos, olhava para as estrelas, e pensava nelas; mas o que se pode pensar sem palavras é difícil de comunicar àqueles que sorveram palavras com o leite de suas mães, e bem pobre é a minha própria língua, de modo que permanecerão secretos os pensamentos secretos da mulher sem nome, deitada na pedra entre as estrelas e seu morro.
Deitada nua, olhando para a noite, algo saído da noite olhou para ela de volta, e o que viu lhe agradou. Porque era bela além do atingível, a filha de Ismael: suas pernas como as da gazela que escapou aos leões; sua cintura, como a de uma guitarra que escapou ao incêndio; seus seios prometiam um perfume mais doce do que os dos cachos de uvas que apenas começavam a murchar sob o sol; e os cabelos negros lhe cobriam a pele, num toque que levava a loucura aos homens.
Aquele que olhava da noite era um Djinn, um ifrit daqueles que, em tempos ainda mais remotos, na madrugada do mundo, haviam rejeitado Alá, se recusado a obedecer aos anjos. Feito de fumaça e de um fogo sutil, ele havia escapado às lanças celestes, e há tempos vagava pelos mares e ilhas, se divertindo em fazer mal aos homens, que são os filhos prediletos de Deus. Na noite em que se passa esta estória, tinha acabado de vir do mar dos romanos, onde uma enorme nau de guerra queimara por sua mão; e ainda ria dos gritos dos gregos implorando misericórdia, e das bocarras abertas dos tubarões, quando viu a filha de Ismael, nua sobre a pedra.
Naquele momento, o ifrit se emudeceu, enquanto o desejo corria por seu corpo de fumaça e sombra. A gargalhada cruel se extinguiu de sua essência, a nuvem luminosa se afogou nos olhos negros. E o shaitan se aproximou, na forma de uma nuvem escura, da ismaelita deitada que olhava para a noite. O toque dele, mais suave do que o fogo que não queima, não foi sentido por ela, apesar de passar por todas as curvas e por todas as cavidades de seu corpo. Quando retirou-se, o Djinn era uma nuvem cambaleante, embriagada; e o cheiro do sexo da mulher da colina das uvas, e o cheiro de sua boca e de seus cabelos, o de suas axilas e de seus pés, ele levou consigo, sem perceber o que tinha feito.
Assim, a mulher sem nome se tornou, também, a mulher sem cheiro. No começo, ela não reparou no que tinha acontecido (porque não reparamos em nossos próprios cheiros, na maior parte do tempo; e isso era mais verdade ainda então, quando as pessoas se alojavam junto às cabras e dormiam com os jumentos, e juntavam o excremento dos animais para queimar em suas casas). Mas um dia, tendo tomado banho no rio que corria em seu monte, e esperando o cheiro feito de ausências que sai de nós após o banho, ela percebeu, e muito se assustou.
Naqueles tempos, os filhos de Ismael ainda não haviam recebido a Lei, então ela não pensou em demônios ou que havia sido punida pelos seus pecados, como os homens de fé fariam nos dias de hoje. Nem, como os doutos fazem, interrogou ela com raios e facas seu corpo, para saber o que tinha acontecido. Simplesmente se deitou novamente, à noite, olhando as estrelas, e perguntou a elas sobre sua condição. Vocês devem saber que as estrelas, então, não eram mais propensas a falar do que hoje; e no brilho oscilante delas, quem falou foi a imaginação da mulher, que criou para si das estrelas um ladrão de cheiros. E porque as coisas mais belas que ela já havia visto eram o próprio reflexo num lago, e um colibri que se inebriava nas garrafas de vinho, ela fez esse ladrão à própria imagem, esguio de corpo e amplo de ombro, com olhos negros como a noite, mas com, no lugar dos cabelos, penas azuis que lhe desciam do escalpo, juntando-se às penas azuis das grandes e irrequietas asas.
Enquanto a mulher sonhava com seu ladrão imaginário, o verdadeiro ladrão, o djinn, que nada sabia da necessidade que têm os filhos de adão de dormir e sonhar, se embriagava com os cheiros que tinha roubado, e se indagava que nova emoção era aquela. Até então, ele nunca sentira nada além de desprezo, de ódio, talvez de pena pelos homens, criados do barro e que ele considerava seus inferiores como o barro é inferior ao fogo sutil do qual ele fora feito. Mas a mulher do monte de videiras devia ser uma bruxa poderosa - era isso! Ela o havia enfeitiçado, e os cheiros aprazíveis que tinha roubado eram a ferramenta do feitiço, a corrente com a qual ela gostaria de submetê-lo! Decidido a devolver os cheiros de sexo e axila, cabelo e pé e boca, o Djinn se afastou de sua montanha, e a sua vinda, cheio de raiva e fogo, era como uma grande nuvem sobre os campos, que aterrorizava os homens. Ele pretendia destruir a bruxa que lhe havia enfeitiçado, e para isso se armou de muitas armas terríveis, para as quais mesmo hoje não há nomes nas línguas de homens e anjos.
Ao chegar perto do morro, entretanto, a prudência lhe fez ocultar sua fúria, e foi novamente sob a forma de uma nuvem invisível que ele se aproximou da ismaelita que sonhava, como se não fosse mais do que o orvalho noturno. E, de posse mais uma vez de seus cheiros, ainda mais desejável ela se tornou ao djinn, e desejo e fúria se misturaram nele, fazendo com que ele se esquecesse da prudência, e acariciasse todo o corpo da mulher, que parecia a ele feito de cobre e da noite, e enquanto ele fazia isso, a mulher sonhava com seu ladrão-estrela, sem saber que era uma nuvem terrível que lhe envolvia os mamilos, que deixava gotas quentes e cócegas em sua barriga, apenas para substituí-las pelo gelo das alturas sem ar; que se inseria como uma língua em sua boca e em seu sexo, e afastava suas pernas e nádegas. E num frenesi final de desejo pela ismaelita, o djinn finalmente, não se contendo, penetrou-a completamente, e deixou assim de existir, e com ele pereceram toda sua ameaça, e todas as suas armas terríveis, e o medo que ele causava nos filhos de Eva.
Mas a mulher ganhou, penetrada pela nuvem noturna, as línguas e as letras, que antes eram desconhecidos; e pôde dar nomes às coisas à sua volta, e a primeira palavra que ela cunhou foi o nome para o ladrão com que sonhara, e a segunda o nome para a criança, luminosa, que carregava em seu ventre. E dessa criança, e da mulher, outras estórias foram contadas, mas esta acaba aqui, que este velho já falou muito para uma noite, e tem sede.
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