Ele andava pelo meio da rua - pelo meio, não pela calçada - quando a dragoa apareceu. Num instante, como se ele estivesse num filme e a partir de um fotograma, naquela minúscula fração de segundo, alguém tivesse simplesmente inserido uma coisa daquele tamanho. Porque ela era enorme: a cabeça, barroca de pele e escamas, ocupava quase a rua inteira, e atrás dela via-se o pescoço e o corpo, esguios e serpentinos, dobrando a esquina. Os olhos imensos não tinham pupilas, mas uma multidão confusa de cores e fractais, hipnóticos mesmo em meio ao terror do monstro imenso, das fumarolas que escapavam dos cantos da boca.
Acordou suando, com o susto, com medo do que não era real. Para se assegurar de que o sonho tinha acabado, passou a mão pela realidade dos lençóis de seda sintética, da manga do paletó jogado ao lado da cama, de veludo artificial, dos peitos de silicone da namorada. Deixou que a mão brincasse um pouco ao chegar nestes, tentou beijá-los, mas a namorada não acordava e ele desistiu, abraçando-a, e dormiu sem sonhos até de manhã.
Foi cochilando depois do almoço, no carro estacionado sob uma amendoeira, que apareceu de novo. E depois, enquanto dormitava numa reunião - o susto divertiu muito seus colegas, que passaram o dia seguinte fazendo caras de susto, diversas e pouco engraçadas. Ele achava que devia explicar que não foi simplesmente o susto de acordar que lhe fez pular, mas ficava com vergonha de explicar que tinha pulado de medo porque, em seu sonho, a cauda longuíssima de uma dragoa ia lentamente se enroscando em volta dele, a espiral acumulando voltas e mais voltas sem nunca tocá-lo, a não ser pelo toque ocasional e quase imperceptível nos pêlos dos braços, ouriçados de medo.
Tentou conversar, no clube sobre uma mesa com churrasquinhos e caipirinhas, com o amigo sobre o assunto. 'Então tu tá com medo de bicho papão, mané? Nessa idade? Já se mijou?'
'Não é bicho-papão, é dragão. Ou melhor, dragoa.'
'Como assim dragoa? É um dragão fêmea? Como você sabe disso? Ela tem peitinhos? Usa batom?'
'Não. Quer dizer, lógico que não, porra. Aliás, não tem nada físico que faça eu achar isso. Mas eu sei, de algum jeito, toda vez que eu sonho, que é o mesmo dragão, e que é uma fêmea.'
'Você tá é doido. Pra doido, vai num médico de cabeça. Analista, psiquiatra...'
'Eu não sou doido, porra. E não vou num cara desses porque não acredito nesses porras.'
'Tu que sabe, rapá. Eu vou voltar pra piscina. Desencana, depois passam esses sonhos.'
'Valeu, vou também.'
'Tu viu os peitos da Alicinha, tua prima, cara? Ela cresceu, hein...'
Dois meses depois, quando já tinha parado de sair à noite para que não corresse risco de cochilar em qualquer canto, acordando suado mais uma noite, é que ele se deu conta de por quê tinha os sonhos recorrentes. Pensando bem, era óbvio. No dia seguinte, largou a namorada. Na noite seguinte, foi dormir segurando um buquê de rosas (apesar dos espinhos doerem um tanto), e uma caixa de bom-bons. Dois dias depois, no analista, ele dizia 'Tá eu sei que se apaixonar por um animal mitológico é meio esquisito, mas ela me paquerou primeiro...'
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